27 Junho 2020
Na dinastia Tudor, surgiu uma posição na corte que se tornou uma das mais cobiçadas de todas as sinecuras reais. Ela oferecia acesso incomparável ao monarca e exigia grande intimidade. O incumbente precisava equilibrar quaisquer agendas públicas ou privadas que ele pudesse chamar à atenção do monarca com a sua avaliação das mudanças de humor do monarca, assim como com as reivindicações e argumentos de outros conselheiros públicos. A bajulação, obviamente, era a mais exigida de todas as características. Sir Edward Burton, que atendia às necessidades de higiene do monarca, foi o primeiro a deter o título de “Noivo da Banqueta” durante o reinado de Henrique VII.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado em National Catholic Reporter, 26-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nesta semana, Raymond Arroyo, da rede EWTN, fez o teste para o equivalente jornalístico do “Noivo da Banqueta” do século XXI, conduzindo uma entrevista com o presidente Donald Trump que foi tão obsequiosa que faria Sir Edward Burton corar de vergonha.
Raymond Arroyo, da rede EWTN, em entrevista com Donald Trump (Foto: NCR)
Arroyo perguntou sobre a oposição de Joe Biden à pena de morte e o seu apoio à abordagem das mudanças climáticas, e disse que alguns católicos e evangélicos dizem: “‘Então, ele é pró-vida, e você não’. Qual seria a sua resposta?”. É uma maneira estranha de enquadrar a questão, sem enfatizar a ética consistente da vida que a Igreja ensina e o modo como as duas partes ficam aquém dessa ética.
O presidente começou sua resposta afirmando: “Sou totalmente a favor da pena de morte para crimes hediondos. É assim que é. Eu sou pró-vida, ele não”. Arroyo não pediu esclarecimentos.
Ao responder a uma pergunta sobre as revelações no novo livro de John Bolton, o presidente esqueceu inicialmente um de seus chavões, a saber, que outras pessoas que estavam na sala e que ainda trabalham para o presidente contestaram o relato de Bolton. Não é preciso temer. Arroyo foi rápido com um lembrete: “E [Mick] Mulvaney disse hoje: ‘Isso é ficção’”. Desde quando jornalistas dão lembretes às pessoas que estão entrevistando?
A pergunta mais revoltante para mim teve a ver com o mito da fraude das urnas. “Vamos falar sobre essas cédulas por correio”, começou Arroyo. “Há telefonemas em todo o país. Eu li que Michigan já enviou pedidos de cédula por correio a todos os seus eleitores. O que o senhor pode fazer sobre isso? O senhor acredita que isso promoverá ou encorajará fraudes nas eleições?”
Quê? Por que não perguntar sobre como essa suposta fraude eleitoral está ligada à questão de quem atirou em JFK? Será que as cédulas por correio são enviadas de forma fraudulenta a alguém em Grassy Knoll? É desnecessário dizer que, com um palco como essa, o presidente estava pronto para descrever seu cenário fantasioso das más consequências de votar pelo correio.
(Eu confesso que temo que Trump e sua equipe possam perpetrar alguns incidentes de fraude eleitoral em novembro, a fim de tentar manchar toda a eleição.)
De que adianta uma entrevista com o presidente, se ela não traz à tona a carta que ele recebeu do ex-núncio e arcebispo desonrado Carlo Maria Viganò? Arroyo citou a carta, a parte em que Viganò discursa sobre uma batalha entre “os filhos da luz e os filhos das trevas”. Ele perguntou se “essa é uma leitura precisa de onde estamos”. O presidente chamou Viganò de um “grande cavalheiro”, que é “altamente respeitado, como você sabe”. Ele caracterizou a carta como “uma tremenda carta de apoio da Igreja Católica”. Mais uma vez, Arroyo não procurou qualificar a descaracterização do presidente sobre a importância da carta.
Antes do fim da entrevista, Arroyo reproduziu um longo trecho do comício do presidente em Tulsa, para conduzir ostensivamente a uma pergunta sobre a participação menor do que o esperado no evento. O vídeo mostrava Trump dizendo: “Joe Biden e os democratas querem processar os estadunidenses por irem à igreja, mas não por queimarem uma igreja”. Mais uma mentira que não foi contestada.
Nada disso importaria, exceto pelo fato de a EWTN ser o principal canal de informações sobre a fé católica para milhões de estadunidenses. Esses telespectadores podem não saber que a rede se tornou cada vez mais um veículo de propaganda trumpiana que está em desacordo com o ensino social católico. Eles podem não saber que Viganò está tão desonrado quanto instável, e que não está em seu poder oferecer qualquer tipo de endosso eclesial ao presidente. Eles podem achar que a EWTN fala pelos bispos, os mestres oficiais da fé.
Em sua declaração “Formando consciências para uma cidadania fiel”, os bispos são bastante claros sobre a natureza do envolvimento católico na vida política da nação:
“Infelizmente, a política no nosso país pode ser muitas vezes uma luta entre interesses poderosos, ataques partidários, frases chamativas e o sensacionalismo dos meios de comunicação. A Igreja convida a um tipo diferente de participação política: aquela formada pelas convicções morais de consciências bem formadas e focada na dignidade de cada ser humano, na busca do bem comum e na proteção dos fracos e vulneráveis. (…) Como cidadãos, deveríamos ser guiados mais pelas nossas convicções morais do que pelo nosso apego a um partido político ou grupo com interesses especiais. Quando necessário, nossa participação deveria ajudar a transformar o partido a que pertencemos. Não deveríamos deixar que o partido nos transforme de modo a ignorar ou rejeitar as verdades morais fundamentais ou a aprovar atos intrinsecamente maus.”
Como você alinharia essas palavras com a vergonhosa aquiescência de Arroyo às errôneas afirmações feitas pelo presidente?
É claro que muitos católicos estadunidenses, tanto à direita quanto à esquerda, colocam suas lealdades partidárias à frente do ensino moral e social católico quando vão à urna. Mas esses católicos estadunidenses não são âncoras de uma rede de televisão que afirma apresentar “notícias católicas confiáveis”. Aqui é onde os bispos não devem reconhecer em Arroyo um mero homem com uma consciência mal formada, mas sim uma ameaça direta à integridade dos ensinamentos da Igreja.
Uma coisa é aconselhar os católicos a votarem em um candidato, cujos pontos de vista podem conflitar com os da Igreja, embora outros não, distanciando-se dos pontos de divergência, mas defendendo que o seu candidato ainda merece o seu apoio. É isso que o documento “Cidadania fiel” aconselha, e é isso que a cidadania fiel, sem maiúsculas, implica.
Outra coisa é ver as pessoas, com o passar do tempo, começarem a dar desculpas pela divergência, insistindo que elas próprias ainda apoiam o ensino da Igreja, mas podem entender por que um candidato em particular não o apoia, e deturpando o significado ou introduzindo considerações estranhas, para minimizar a dissonância cognitiva. É triste ver isso, e isso ocorre tanto à esquerda quanto à direita.
Mas o complexo político-teológico da EWTN abraça e celebra os próprios pontos em que o presidente diverge dos ensinamentos da Igreja. Neste grande país livre que são os EUA, Raymond Arroyo e a EWTN têm todo o direito de fazer isso, mas sejamos claros: eles se tornaram mercenários políticos e abriram mão de qualquer reivindicação à ortodoxia católica.
Arroyo é o “Noivo da Banqueta” católico do seu monarca, e não mais um jornalista, apenas um bajulador e um líder de torcida. Isso é lamentável, sem dúvida, mas também é perigoso. Já passou da hora de os bispos enfrentarem o perigo.
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A bajulação das mídias católicas dos EUA a Trump - Instituto Humanitas Unisinos - IHU